quinta-feira, 2 de setembro de 2010

No viés da cortina escura

Meu mundo caiu na primeira faixa do lado A...

... entre recortes de jornais amarelados dos tempos (todos) em que não sorrimos.

... podando do claro o avanço do viés da cortina escura no escape da janela.

... no desconforto de um novelo de roupas amontoadas que absorvem duas laudas inteiriças e uma terceira a ser preenchida de um escrito que vomita à lógica.

... e na estampa de um gênio em transe na capa de um livro.

... e na imagem de mulheres e homens que sonhavam de faixas e sandálias e gritavam abaixo e contra.

... num imaginário armazém de cabeças de senhores encastelados e cortados sob a violência que destila um vermelho expresso de sangue no taco descolado do piso que se alimenta de pó.

... no redemoinho da memória de um pátio de escola frustrado por não ser quartel.

... entre xícaras de café tomadas pelos dias e pelas moscas.

... dentro de um pacote de supermercado que gruda extrato de margarina e pães de meses.

... e num pedaço de papel amassado onde o tingimento azul da caneta mais barata escreveu o nome composto da menina mais bonita.

... envolto no grito não gritado de farra farsa de cidade que brada Europa.

... e na ânsia de querer ver extraditada uma unha.

... e no medo do revolto dragão desenhado em página dupla.

... desesperado por não ter partido a cabeça numa corrida contra a parede branca e consciente de que não será iluminada.

... sem forças para pesquisar uma faca entre pilhas gastas e moedas em desuso.

... na ausência da coragem para que o pulso sirva à lâmina.

... no arrependimento de não ter sido a palavra final da discussão.

... na diplomacia de não ter cuspido, cunhado e grunhido um palavrão.

... na fisionomia de acomodado que finge aceitar: é assim.

Meu mundo caiu na fraqueza do abrigo que ceifa a mão quando ela é desejosa por abrir a cortina.


(Ayrton Baptista Junior, 1999)

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