quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Quando Belarmino e Gabriela ouviram rock

“As mocinhas da cidade são bonita e dançam bem”

(Mocinhas da Cidade, composição de Nhô Belarmino, 1959)


As mocinhas da cidade são bonitas, dançam bem e são ignoradas. Em 1993, a prefeitura de Curitiba fincou o Conservatório de MPB no Largo da Ordem e muitos dos agentes ali instalados apenas repetiram caminhos já consagrados do que é Música Popular Brasileira: Noel Rosa, Dorival Caymmi, Cartola, Pixinguinha, Tom Jobim, Chico, Caetano, Gil, etc...

A dupla Nhô Belarmino (1920-1984) e Nhá Gabriela (1923-1996), referência básica da cancão curitibana, ainda não se fez dona desta casa talvez porque falte a percepção de que a música feita aqui jamais terá vez nos bailes afora se não ofertar uma gritante originalidade. Então, que Curitiba sirva uma... pororoca da canção do Batel com a sonoridade do Boqueirão!

Não peço aqui uma passeata que ordene a execução de Mocinhas da Cidade e, tampouco, sua imediata aceitação. Só quero que ela seja ouvida, vomitada, incorporada e agredida. Por isso, sugiro uma radicalização da música urbana quanto à Mocinhas e suas descendências periféricas-rurais: ou a adoração feito lua-de-mel ou a alucinada sangria com tiros à queima-roupa. Os dois caminhos hão de tornar a música de Curitiba mais urgente e vibrante, pois técnica e bem aplicada ela já é.

A pergunta não é “qual a banda de rock que vai explodir nacionalmente” (como se a modernidade apregoada em Curitiba ficasse mais lustrosa por conta do rock), mas “onde andam Campinho e Campeiro?”. O pop de Recife incorporou o maracatu. A moderna música de Porto Alegre não quer ser vanerão. Adotado ou escorraçado, o regional foi escutada e serviu para apontar uma estrada diferente da trilha de Londres, Berlim ou São Paulo. Uma estrada que até cruza com a das metrópoles, mas com legítima via própria.

(Ayrton Baptista Junior)


Escrito em 2005.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

No viés da cortina escura

Meu mundo caiu na primeira faixa do lado A...

... entre recortes de jornais amarelados dos tempos (todos) em que não sorrimos.

... podando do claro o avanço do viés da cortina escura no escape da janela.

... no desconforto de um novelo de roupas amontoadas que absorvem duas laudas inteiriças e uma terceira a ser preenchida de um escrito que vomita à lógica.

... e na estampa de um gênio em transe na capa de um livro.

... e na imagem de mulheres e homens que sonhavam de faixas e sandálias e gritavam abaixo e contra.

... num imaginário armazém de cabeças de senhores encastelados e cortados sob a violência que destila um vermelho expresso de sangue no taco descolado do piso que se alimenta de pó.

... no redemoinho da memória de um pátio de escola frustrado por não ser quartel.

... entre xícaras de café tomadas pelos dias e pelas moscas.

... dentro de um pacote de supermercado que gruda extrato de margarina e pães de meses.

... e num pedaço de papel amassado onde o tingimento azul da caneta mais barata escreveu o nome composto da menina mais bonita.

... envolto no grito não gritado de farra farsa de cidade que brada Europa.

... e na ânsia de querer ver extraditada uma unha.

... e no medo do revolto dragão desenhado em página dupla.

... desesperado por não ter partido a cabeça numa corrida contra a parede branca e consciente de que não será iluminada.

... sem forças para pesquisar uma faca entre pilhas gastas e moedas em desuso.

... na ausência da coragem para que o pulso sirva à lâmina.

... no arrependimento de não ter sido a palavra final da discussão.

... na diplomacia de não ter cuspido, cunhado e grunhido um palavrão.

... na fisionomia de acomodado que finge aceitar: é assim.

Meu mundo caiu na fraqueza do abrigo que ceifa a mão quando ela é desejosa por abrir a cortina.


(Ayrton Baptista Junior, 1999)