segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Goteira no Funeral (teatro)

de Ayrton Baptista Jr.

Personagens: Vicentina (mãe) e Maria Virgínia (filha), ambas vestidas de preto.

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Vicentina: Minha filha, não saia da porta! Não deixe aparecer o verdureiro.

Maria Virgínia: Por que, mamãe?

Vicentina: Que ninguém insinue que Maria Vicentina Píerângelo mantém relações muito apessoadas com indivíduos deste escalão.

Maria Virgínia: Estou vigilante, mamãe! Vai que o verdureiro aparece para saber quando vamos pagar a feira...

Vicentina: Ah! Que saudades do enterro de seu avô! Veio até ministro. Mas não há mais velórios como naquela época. Quando seu avô morreu Isadora Caldas Cerqueira apareceu com um longo preto exclusivo do Guilherme Guimarães. Morrer era uma alegria!!!

Maria Virgínia: Os vizinhos já estão se mexendo para vir aqui. Um silêncio! Faz uma hora que não se ouve o carro do sonho nessa rua.

Vicentina: Que vizinhos? Não pedi pra virem. Não telefonei, nem mandei anunciar na rádio.

Maria Virgínia: Na rádio, papai só seria anunciado se tivesse sido baleado num viaduto. E desde que não interrompesse o ataque do Coxa.

Vicentina: Aí, ele seria homenageado numa grande passeata pela paz!

Maria Virgínia: Eu não seria tão exclamativa! Essas passeatas não celebram indivíduos com boca em estado precário, mamãe. É só para quem sorri em comercial de pasta de dente. Por falar em margarina... Não tem lanche pros convidados?

Vicentina: Não me faça chorar... Ah... Os quitutes que a Iguaçu preparava quando esta cidade parava para ver um funeral dos Pierângelo. Era feriado nacional!

Maria Virgínia: Mamãe, esse tempo já foi. Ah... O funeral ficou em três prestações. Pedi um abatimento, lembrei que a família era cliente especial. O moço disse “volte sempre”, mas não teve fita amarela. Só choro e vela.

Vicentina: Três prestações? O homem tomba uma vez só e eu ainda tenho que pagar três prestações? Desse jeito é preferível continuar vivo. É preciso penhorar o bolso antes de ser enterrado?


Maria Virgínia: E ainda tem a dívida do carro.

Vicentina: Do carro da funerária?

Maria Virgínia: Não, as parcelas do Corsa. Papai ficou devendo cinco e não pôde concorrer a viagem para a Copa. Pão de novo-pobre quando cai no assoalho está sempre com requeijão virado para baixo.

Dona Vicentina: As dívidas que morram com o endividado! E você não desgrude da porta. Não deixe o jardineiro aparecer.

Maria Virgínia: Mas não era o verdureiro?

Dona Vicentina: Também. Mas o jardineiro pode vir com flores como se tivesse alguém pedindo enterro aqui.

Maria Virgínia: E não tem?

Dona Vicentina: Mas, claro que não. Seu pai será cremado!

Maria Virgínia: Cremado? Mas ele pediu isso?

Dona Vicentina: E quem é seu pai para pedir isso ou aquilo? Não paga dívida e ainda quer solicitar? Não sou guichê de reclamações. Vai ser cremado e terá suas cinzas jogadas no Rio Sena.

Maria Virgínia: No Rio Sena? Mamãe, essas mortes que saem até no Bessa são muito, muito... Caras! Acho que papai já ficará sorridente se ouvir o nome dele no José Domingos.

Dona Vicentina: Mas você sempre para estragar a fantasia. Parece goteira no Curitibano. Sei lá! Distribuem jogo de cama, de mesa, de banho nessas revistas... Não sorteiam jogo de funeral, não?

Maria Virgínia: Não podemos lançar as cinzas na praia? Uma amiga minha jogou o pai dela em Matinhos. É que ele saía no Caiobanda e foi dentro de garrafão de Campo Largo.

Vicentina: Garrafão? De onde saiu este vocábulo, Maria Virgínia? Aluna do Divina não se apropria deste sotaque de operário. Aonde você conheceu esta primogênita de degustador de tão inapropriado líquido?

Maria Virgínia: Na Realeza!

Vicentina: Aiii! Não acredito! Sonhei em te matricular no melhor adestrador de escargot do Ile De France e agora meus tímpanos são alvo de tal desonra que lembra minha infância fúnebre. Vou deserdá-la!

Maria Virgínia: Deserdar? Eu lá quero aquela máquina de costura... Eu, hein? Reumatismo aqui nem no intervalo comercial! E que infância fúnebre foi essa?

Vicentina: Era forçada todo ano a ouvir aquele cortejo de lamentos. Uma desgraça só (canta) “Se você fosse sincera...”

Maria Virgínia: (canta) “Ô, ô, Aurora!”. Mas isso é uma marchinha, alegre. (canta) “Veja só que bom que era”.

Vicentina: Que bom que era se Aurora não fosse mentirosa. E ainda havia mais tragédia. (canta) “Foi a camélia que caiu do galho deu dois suspiros e depois morreu”.

Maria Virgínia: Mas o povo se divertia!!!

Vicentina: Se divertia? (canta) “Por causa de uma colombina acabou chorando, acabou chorando...”. É alegre isso? Mas, felizmente tudo se acabou numa quarta-feira de cinzas, quando conheci seu pai.

Maria Virgínia: Se não fosse papai você estaria como cobradora até hoje, com a bunda na cadeira a catar moedas trocadas na roleta. “Moça, esse ônibus pára na Tiradentes?”.

Vicentina: Que cobradora, minha filha??? Gerente do departamento financeiro do Comendador Roseira-Raquel Prado. Cobradora é nestes pestilentos que te levam para o, com perdão da má palavra, Tatuquara.

Maria Virgínia: E qual é a diferença?

Vicentina: Não seja desaforada! No Roseira era preciso ter classe. Um dia barrei a mulher de um camelô que ousou adentrar o veículo com uma sandália em frangalhos.

Maria Virgínia: O quê??? Você fez isso?

Vicentina: Claro. Era preciso ter charme para desfilar naquele encerado. Um dia até elegemos a mais elegante!

Maria Virgínia: E quem ganhou?

Vicentina: Uma administradora de funções domésticas muito bem apessoada do Cajuru. Não repetia roupa a mocinha.

Maria Virgínia: Administradora de funções domésticas, vulgo empregada.

Vicentina: Não me provoque, Maria Virgínia!!!

Maria Virgínia: E qual foi o prêmio? Um vestido de gala pro Grande Prêmio Paraná? Convite pra matinê no Ópera?

Vicentina: Isso mesmo. Cine Ópera! Para ver Anouk Aimée e Jean-Louis Trintignant. “Um Homem, Uma Mulher”. Foi uma manhã de luxo, a da entrega do prêmio. Eu cantava (canta) “É melhor ser alegre que ser triste. Alegria é a melhor coisa que existe. É assim como a luz no coração”.

Maria Virgínia: Essa (canta) “luz no coração...” lembra que a daqui de casa já venceu. E com esse velório vamos precisar de ajuda dos vizinhos.

Vicentina: Nunca! Pode avisar a funerária que não vai ter mais cemitério, vamos enterrar aqui mesmo.

Maria Virgínia: E os vizinhos, mamãe? O que não vão pensar?


Vicentina: Ah... Agora é você quem pergunta, né? Vai ser aqui no quintal com um concerto.


Maria Virgínia: Recital? E quem virá musicar o aroma que exala deste cadáver enquanto ele apodrece?

Vicentina: Teu pai demorou um ano para morrer. Não custa esperar mais uns dias. A Diana, a leidi dai, ficou três dias quieta, no caixão, ouvindo o Elton John.

Maria Virgínia: Coitada!!! E não reclamou?

Dona Vicentina: Vou telefonar para o Ivon Curi.

Maria Virgínia: O Ivon Curi morreu, mamãe!

Vicentina: Morreu? Mas que sujeito ingrato!!! Pra cantar na casa da Lili Marinho ele estava vivo...

Maria Virgínia: Artistas são movidos a cachê. Que tal chamar um calouro? Tenho uma amiga da pós que tem uma prima que já cantou na... Deixa. No seu enterro vou convidar o Cauby Peixoto.“Vivia no morro a sonhar com coisas que o morro não tem”.

Vicentina: Meu enterro? Você quer que eu morra, Maria Virgínia???

Maria Virgínia: Mamãe, um funeral de classe, como você merece, tem que ser planejado com muita antecedência. Contratar buffet, artistas, vestido exclusivo. Mas saiba que para ter luzes não se pode morrer num dia qualquer.

Vicentina: Tem dia ideal?


Maria Virgínia: Quarta-feira. Dá tempo de ser capa nas revistas de domingo. E se for até o meio da tarde, ocupa um bloco inteiro do Jornal Nacional, com direito à lágrima da Fátima Bernardes. Mas se morrer na sexta-feira...

Vicentina: Sexta-feira não sai com foto na capa?

Maria Virgínia: Apenas duas linhas na seção Morreram, ao lado de outros 78 coitados filhos de Maria, na penúltima página do caderno de classificados, procurando vaga entre anúncios de cães perdidos.

Vicentina: Credo! Como é triste morrer numa sexta-feira. Pena que não fizemos esse planejamento para o seu pai.

Maria Virgínia: Mamãe, ainda há uma solução. Li no jornal que vem chuva à noite.

Vicentina: Chuva? E isso muda a morte da bezerra? Digo, a morte de seu pai?

Maria Virgínia: Chuva, dilúvio. Para inundar a cidade. Aí ninguém sai de casa, ninguém vê enterro... Ninguém vai saber se o verdudeiro e o jardineiro estiveram aqui. “Tomara que chova três dias sem parar”

Estrondo de chuva, temporal.
Mãe e filha cantam abraçadas.

Música ao fundo:
“Tomara que chova três dias sem parar
A minha grande mágoa
É lá em casa não ter água
E eu preciso me lavar”.

FIM

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