terça-feira, 2 de março de 2010

Toc-toc, Péééiiiiiin, Dim-dom

Escada encardida, corrimão de verniz secular, corredor sombrio, luz cinqüenta velas. Parede de esmalte seco. Portas: quatro.

Toc-toc: a velhinha. O velho álbum, a tevê em preto-e-branco, a radiola, o gato, a página de anúncio classificado estendida no piso não encerado, o emoldurado retrato de casamento na cômoda, a goteira, o carcomido tapete à beira da cama, dois 3x4 do filho no criado mudo, resto de tecido preso na máquina de costura, o calendário do mês atrasado, o sorriso da bisneta, a conta da luz (paga) do mês vigente na entrada, o rádio quebrado de ondas curtas, revistas que custaram cruzeiros, o pequeno baú sobre o guarda-roupa, o vestido branco estampado de margaridas, o telefone sem teclas, o nome do falecido na correspondência.

Péééiiiiiin: o meia-idade. O recorte do encontro de cineclubistas, rabiscos e sorriso de moça no porta-retrato, a tevê a cores, a cama por arrumar, a máquina de escrever, a poeira no disco do três-em-um, o guarda-roupa sem portas, o cartaz da peça revolucionária, a geladeira mal fechada, um escritor há muito esquecido em três ensaios de jornal, a filmadora super-8, a calça boca-de-sino no pôster, duas latas de cerveja amassadas no canto da sala, a gaveta de escritos mimeografados, cicatrizes no corpo, o telefone com teclas, o livro de poemas da irmã desaparecida.

Dim-don: a estudante. A bolsa da faculdade de filosofia, o controle remoto da tevê, a sandália preta, o aparelho de CD, dois cigarros no maço, a esponja de aço gasta em cima do prato do almoço, o pedaço de papel com um nome e vários números anotados no bolso de trás da calça, três folhas caindo da agenda, o rádio ligado baixo no programa de blues, fiapo de algodão no frasco de desodorante, o grampo de cabelo na pia, a camisa da banda de rock, o recheio de queijo e presunto no pão, a infância numa fotografia da escola, o telefone celular, a página marcada no livro da escritora suicida.

Quarta porta: olho mágico, pintura descascada, um fio de campainha à solta, um número deslocado no alto. Sobre o capacho o jornal de ontem não recolhido, duas correspondências e o transbordar de manchas de sangue que nasce no lado de dentro do apartamento.

*****

Ayrton Baptista Junior, em 1999

2 comentários:

Prof. José Fernando disse...

É meu amigo, avida se repete medonhamente. A vida é de uma miséria imponderável.

Prof. José Fernando disse...

P.S: O que importa é não toparmos com a porta errada!