sexta-feira, 2 de abril de 2010

Cinema, a peça, é o delírio dos cinéfilos

Felipe Hirsch é mentiroso. No palco do Guairinha, o diretor avisa que Cinema, a nova investida da Companhia Sutil, está quase no ponto, mas que veremos ainda um ensaio aberto. Balela. Para delírio dos cinéfilos, Cinema, a peça, está pronta!

O público ocupa cadeiras no palco do teatro. À sua frente, o elenco incorpora cinéfilos espalhados num cinema de poltronas vermelhas (iguais à do extinto Ritz, da XV). O filme (que não vemos) já começou e a iluminação reproduz o efeito de claridade provocada pela tela. A peça (que vemos) já começou.

O que Cinema exibe é a vingança dos cinéfilos. Não entendeu? É que seres desta espécie, como eu, são frequentemente acusados de verem a vida dos outros, a dos personagens, de não viverem. Meu irmão! A gente vive um bocado!

O som denuncia vários gêneros (trechos de comédia romântica, musical, aventura, drama, Nouvelle Vague, A Doce Vida, São Paulo S/A) e, sem que a projeção pare, os jovens atores da Sutil compõem esquetes num ritmo de baile que lembra o próprio: O Baile, filme de Ettore Scola (no salão deste, sem diálogos, passam 50 anos da história da França).

Nesta sessão corrida há a espectadora com as falas decoradas do melodrama, os estudantes que dormem na mostra alemã, o encontro de um casal que discorre longamente sobre os contra-planos do novo cinema oriental, a que incorpora uma Judy Garland e dança sobre as cadeiras, os que são tomados pelo rock, romances feitos e desfeitos, e um sem-fim de amassos, um deles com a participação da mulher de duas cabeças.

À certa altura, a sessão é interrompida por um diretor que fala, em russo, sobre a sua arte. Felizmente, o sujeito vai embora ao perceber que não agrada. Ele desconfia que o melhor cinema não é o que se explica, mas o que é visto e vivido. Dentro do cinema.

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Ayrton Baptista Junior, 2010

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